quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Fábrica

Mais um teste. Criando novo marcador para o blog: Crônicas.

Tudo começou no carro, hoje pela manhã, ouvindo “Fábrica”, da Legião Urbana. E, assim, do nada, a história começou a pipocar na cabeça. Sem mais. Foi surgindo, junto com a letra. Não sei se vocês vão gostar, mas é muito mais difícil criar uma história do zero, sem personagens que eu conheça, sem ambientação e sem contexto. Ou quase isso...


E como a música é “Fábrica”, não há como não dedicar à D. Baratinha. Minha Esposa e Amiga. (promessa é dívida!)



E era assim todo santo dia. Acordava, como tinha de ser, às 5h da manhã. Colocava a água para ferver, enquanto ia ao banheiro. Voltava e tomava seu café preto - com açúcar – enquanto ouvia as notícias no rádio, sempre na mesma estação. Sempre as mesmas notícias.

Às 5h30min já estava na porta de casa. Quinze minutos de caminhada. O mesmo ônibus. O mesmo motorista e cobrador. O “bom-dia“ no automático e um sorriso que não era o seu. Pelo menos pareceria simpático, decidiu há algum tempo.

Às 7h entrava na fábrica. Com o mesmo sorriso no rosto cumprimentava os seguranças, no portão. Ele não entendia o que, afinal, tinha que ser guardado ali. A fábrica já não era a mesma. Vendia pouco e entregava a um único cliente. Quem, em sã consciência, iria roubar moldes de ferro específicos para a indústria automobilística? Era o que ele fazia. Depois da liga de ferro derretida sair do auto-forno, era ele quem controlava a máquina do molde.

E quando chegava à máquina encontrava sua única amiga. Ela não tinha um nome fácil, tampouco respondia a ele. Era só uma máquina. Ele a chamava pelo modelo: XLR-22. Era mais fácil, sem formalidades.

Ele sabia que estava sendo filmado o tempo todo. E tempo era o que não tinha, exceto nas pausas, onde saia e encostava-se à parede, vendo os outros empregados fumando do outro lado. Lá ficava, admirando um céu cinza, até o sinal tocar de novo e voltar para sua amiga.

Com a XLR-22 desenvolveu uma relação de amor e ódio. Respeito e admiração. Ela quase o fizera perder a mão - em um acesso de raiva – quando deixou vazar a liga metálica do molde. Por sorte ele conseguiu apertar o botão de emergência. Ela o fizera chorar – quando quebrada – e ele teve de ficar uma semana em casa: férias coletivas. Forçadas. Mas era com ela que ele conversava. Mudo. Deixava apenas seu coração falando. Inventava histórias, cafés-da-manhã com a realeza, almoços em restaurantes chiques e encontros que nunca tivera, nos mais variados pontos turísticos do mundo. Falava de um tempo em que a fábrica não estava ali. Um tempo em que todo aquele pátio era um apanhado de árvores. Tudo verde. Um tempo em que olhar para o céu o deixava com lágrimas nos olhos, pela força da luz do Sol, e não pela fuligem.

Foi a XLR-22 a primeira a saber quando seu pai ficou doente. E foi ela a única a consolá-lo, verdadeiramente, no dia da morte de seu pai. Quieta. Ela apenas ficou ali, onde sempre esteve, ouvindo seu coração desabafar. Ele foi ao velório. Ao enterro. Ouviu pessoas dizerem o quanto sentiam, apenas por protocolo. Apenas por educação.

E por educação o mesmo sorriso, triste, lhe estampava o rosto naquele momento. E nos próximos durante muito tempo.

Com a máquina desabafava: a falta de perspectiva (“Afinal que justiça há em uma fábrica em que a pessoa que trabalha duro deve ficar na mesma posição para sempre? Era o prêmio, e o castigo, por fazer o serviço direito?”). A solidão. A dificuldade em lidar com a falsidade das pessoas a sua volta – e essas, ele acabou por reconhecer muito cedo. A XLR-22 era verdadeira, só exigia dele que apertasse o botão certo, que chamasse a manutenção, de tempos em tempos, que estivesse atento aos seus sinais luminosos e avisos sonoros. E que estivesse ali, também para ela.

Com o pouco salário conseguia sobreviver. Pagava suas contas e comprava comida, sem esbanjar. Às vezes, quando sobrava um pouco do salário, comprava escondido óleo de máquina ou uma flanela nova e, com todo o carinho, entregava os presentes à XLR-22. Sem contrapartida. E ela, com gratidão, apenas ficava lá, olhando para ele e fazendo o seu trabalho, sem nunca parar.

Essa história poderia continuar por anos, até que ele se aposentasse, não fosse a compra de uma máquina nova, toda ela preparada para operar por meio de programas de computador. Todos eles integrados em um sistema de controle de produção e entrada de pedidos. Vinte por cento da mão-de-obra da fábrica foi mandada embora. Ele era apenas mais um número, nesse meio. Não teve tempo de se despedir de sua Amiga. De dizer um adeus. Assim como a máquina, morreu esquecido. De desgosto. Sozinho.

Nada demais.

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